Ainda a exigência de Certidão Negativa de Débitos (CND) e os Direitos Fundamentais

O tema da exigência de Certidão Negativa de Débitos Fiscais (CND) para se fazer praticamente qualquer coisa em nosso País já foi tratado neste blog (veja aqui).

Agora transcrevo abaixo artigo de nossa autoria que foi publicado no site Tributario.net na data de ontem (18/08/2009), acerca da manifesta violação de direitos fundamentais que ocorre ao se exigir Certidão Negativa de Débitos Fiscais (CND) para, entre outras coisas, contratação de professores em instituições públicas federais de ensino.

O artigo foi motivado por caso concreto em que tivemos que impetrar um mandado de segurança para que a pessoa fosse contratada independentemente de apresentação da CND. Felizmente a liminar foi deferida.

A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO NEGATIVA PARA A CONTRATAÇÃO DE PROFESSORES PELAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR

Cláudio de Oliveira Santos Colnago CLÁUDIO DE OLIVEIRA SANTOS COLNAGO > CColnago.tributario.net
Advogado. Sócio da Bergi Advocacia. Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Professor de Direito Constitucional e de Direito Tributário em cursos de Graduação e Pós-Graduação no Espírito Santo.

 

Introdução

Busca-se, pelo presente artigo, verificar se é compatível com o sistema jurídico a exigência de apresentação de Certidão Conjunta de Débitos Relativos a Tributos Federais e à Dívida Ativa da União como condição para a contratação de professores por instituições federais de ensino superior.

1. O direito fundamental ao exercício de profissão

A Constituição Federal de 1988 é expressa ao garantir, no inciso XIII do artigo 5º, o direito ao exercício de qualquer profissão, desde que obedecidos os requisitos técnicos estabelecidos em lei. Diz o enunciado constitucional que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

A liberdade fundamental garantida no inciso XIII do artigo 5º da Constituição é reforçada pela regra do parágrafo único do artigo 170 do Texto Fundamental, pela qual “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

Da conjugação das duas normas constitucionais se percebe que a vontade do Constituinte foi permitir, em regra, a liberdade de exercício de atividade profissional, salvo nos casos em que tal exercício demandasse uma preparação técnica mínima.

Em outras palavras, a liberdade de exercício de profissão não é absoluta, podendo sofrer restrição mediante lei. Mas referida lei deve guardar uma relação de pertinência lógica com a qualificação necessária para o exercício da respectiva atividade econômica, sob pena de inconstitucionalidade.

Torna-se relevante destacar que desde há muito o STF entende que “…as restrições legais à liberdade de exercício profissional somente poderiam ser levadas a efeito no que respeita às qualificações profissionais, devendo ser reputada inconstitucional a restrição legal desproporcional e que violasse o conteúdo essencial daquela liberdade”. (RE 511.961, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17-6-09, Plenário, Informativo 551)

Em tal contexto se incluem os professores universitários que, para ministrarem disciplinas do Ensino Superior, devem atender às exigências mínimas de domínio teórico acerca do tema a ser lecionado.

Com base em tais colocações é que surge a indagação acerca da possibilidade de que a existência de débitos para com o Fisco Federal possa ser tido como empecilho ao exercício de uma profissão, sobretudo restringindo a contratação, por instituições públicas federais de ensino, dos respectivos profissionais.

2. Débitos fiscais e restrições a direitos fundamentais

Tendo em mente a fundamentalidade do direito ao exercício de profissão, indaga-se se o legislador ou a própria Administração Pública poderiam condicionar a contratação de profissionais à demonstração prévia de sua regularidade fiscal, mediante a apresentação de “Certidão Conjunta de Débitos Relativos a Tributos Federais e à Dívida Ativa da União”.

Destaca-se ainda que a única hipótese constitucionalmente prevista em que há previsão de restrição de direitos fundamentais em razão de débitos fiscais consiste na previsão do § 3º do artigo 195, que assim estabelece: “A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios”.

Ora, interpretando-se referida norma constitucional em consonância com o inciso XIII do artigo 5º, conjugado com os direitos também assegurados pelo artigo 170 da Constituição, conclui-se que somente nos casos de pessoas jurídicas é admissível a proibição de contratação com o Poder Público em razão de débitos fiscais e, ainda assim, é necessário que tais débitos digam respeito a uma contribuição de financiamento da seguridade social (como o PIS, a COFINS, a CSLL, dentre as tantas existentes).

Conseqüentemente, como professores sempre serão pessoas naturais, não é constitucionalmente legítimo invocar referido dispositivo constitucional como fundamento para restringir sua liberdade de exercício de profissão. Trata-se de verdadeiro comportamento que a doutrina vem denominando de “sanções políticas”.

Como bem explica o professor Hugo de Brito Machado, as sanções políticas “…são flagrantemente inconstitucionais, entre outras razões porque (…) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização dos órgãos públicos, assegurado pelo artigo 170, parágrafo único, da vigente Constituição Federal”. (MACHADO, Hugo de Brito. Sanções Políticas no Direito Tributário. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, nº 30, pp. 46/47).

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é torrencial ao esclarecer que condicionar a prática de qualquer ato da vida civil ao prévio recolhimento de um tributo é ato incompatível com a Constituição. Representando tal entendimento, a Corte editou três Súmulas, pela quais “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo” (Súmula 70), além do que “é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos” (Súmula 323), enfatizando-se ainda que “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais” (Súmula 547).

O STF teve algumas oportunidades de recentemente reafirmar a sua jurisprudência no sentido da inconstitucionalidade das sanções políticas, por violarem direitos fundamentais básicos dos contribuintes, como se verifica em dois importantes julgados (a seguir parcialmente transcritos): o RE 413.782/SC e a ADIn 173.

No que toca ao RE 413.782/SC, ressalta-se trecho do voto do Ministro Celso de Mello: “A circunstância de não se revelarem absolutos os direitos e garantias individuais proclamados no texto constitucional não significa que a Administração Tributária possa frustrar o exercício da atividade empresarial ou profissional do contribuinte, impondo-lhe exigências gravosas, que, não obstante as prerrogativas extraordinárias que (já) garantem o crédito tributário, visem, em última análise, a constranger o devedor a satisfazer débitos fiscais que sobre ele incidam. O fato irrecusável, nesta matéria, como já evidenciado pela própria jurisprudência desta Suprema Corte, é que o Estado não pode valer-se de meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles – e mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional – constranger o contribuinte a adimplir obrigações fiscais eventualmente em atraso.” (RE 413.782, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2005, DJ 03-06-2005 PP-00004)

Também a ADIn 173 é relevante sobe o tema, por ter declarado inconstitucionais uma série de normas que condicionavam a prática de atos corriqueiros da vida civil à prévia comprovação do adimplemento de tributos. Destaca-se da ementa o seguinte trecho: “Os incisos I, III e IV do art. 1º violam o art. 5º, XXXV da Constituição, na medida em que ignoram sumariamente o direito do contribuinte de rever em âmbito judicial ou administrativo a validade de créditos tributários, violam, também o art. 170, par. ún. da Constituição, que garante o exercício de atividades profissionais ou econômicas lícitas”. (ADI 173, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 25/09/2008, DJe-053 DIVULG 19-03-2009 PUBLIC 20-03-2009 EMENT VOL-02353-01 PP-00001)

Ora, se a exigência de Certidões Negativas de Débito para registro de contratos sociais em Juntas Comerciais consiste em conduta inconstitucional, com muito mais razão há de se considerar igualmente contrária à Constituição igual exigência como condição para a contratação de professores por instituições públicas federais de ensino superior.

No mesmo sentido do que aqui sustentado, destaca-se trecho de decisão proferida pelo juízo da 2ª Vara Federal Cível de Vitória/ES, no sentido de que “…a prova de regularidade fiscal, como requisito para contratação de um indivíduo pelo Poder Público, padece de grave inconstitucionalidade material, por infringir a garantia prevista no art. 5º, inciso XIII, da Lei Maior (…). Sob a perspectiva da máxima efetividade dos direitos fundamentais, hoje consagrada pelo Supremo Tribunal Federal, não se pode admitir que a existência de pendências tributárias acabe por restringir, ou mesmo inviabilizar, o exercício das garantias previstas no art. 5º da Carta Constitucional”.

3. Conclusões

Verificamos, seja pelo postulado da máxima efetividade dos direitos fundamentais, seja mediante interpretação a contrario sensu do artigo 195, § 4º da Constituição, que não é lícito às instituições públicas federais de ensino condicionarem a contratação de professores à apresentação da Certidão Conjunta de Débitos Relativos a Tributos Federais e à Dívida Ativa da União. Tal comportamento viola crassamente o direito fundamental ao exercício de qualquer profissão ou atividade econômica, configurando-se em odiosa forma de sanção política que deve ser repelida pelos aplicadores do Direito.

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